O faraó acordou perturbado. Dois sonhos estranhos não lhe saíam da cabeça. No primeiro, sete vacas gordas e bonitas saíam do Rio Nilo seguidas por sete vacas magras e feias. Ops! Surpresa! As sete esquálidas devoraram as sete nutridas. No segundo, sete espigas bonitas e cheias de grãos surgiam de uma haste seguidas por sete espigas feias e mirradas. Repetia-se a cena: as sete ressequidas comiam as sete fartas.
“Venham os sábios e intérpretes”, ordenou o poderoso. Eles foram. Mas não conseguiram decifrar o mistério. O copeiro do palácio, que passara uma temporada na prisão, contou ao faraó que conhecera um jovem na cadeia a quem os deuses haviam dado o dom da interpretação dos sonhos. Era José. Não deu outra. O faraó chamou o rapaz e lhe ordenou que explicasse a história das vacas e das espigas. José explicou:
—Os dois sonhos têm o mesmo sentido. As sete vacas gordas e as sete espigas granadas representam sete anos de fartura. As sete vacas magras e as sete espigas mirradas são sete anos de fome que se seguirão à abundância.
Alertado, o faraó não pensou duas vezes. Ordenou que se construíssem celeiros por todo o país e se armazenassem grãos suficientes para os anos de fome. E, assim, o Egito foi o único país a passar incólume pelo período das vacas magras. A mesma precaução se aplica à língua. No trato de grafias, concordâncias, regências, empregos e colocações, cuidados se impõem.
Um dos sinais amarelos se acende no uso do pronome todo. O dissílabo ora aparece no plural, ora no singular. Ora com artigo, ora sem artigo. Como se safar dos pecados a que as variações induzem? É fácil. O primeiro passo é interpretar o pronome na frase. O segundo, como fez o faraó, tomar as medicadas corretivas possíveis.
Todo
No singular, com o substantivo sem artigo, o solitário significa cada, qualquer: Todo (qualquer) homem é mortal. Todo (qualquer) país tem uma capital. Toda (qualquer) hora é hora. A toda (qualquer) ação corresponde uma reação.
Todo o, toda a
Acompanhado de substantivo com artigo no singular, o casal quer dizer inteiro: Li todo o livro. Trabalho o ano todo. Viajei toda a semana.
Todos os, todas as
No plural, acompanhado de substantivo com artigo, o pronome dá o sentido de totalidade das pessoas e dos representantes de determinada categoria, grupo ou espécie: Em Brasília, nem todos os alunos conseguiram matrícula em escolas públicas. Todos os brasileiros com idade entre 18 e 70 anos são obrigados a votar. Vejo o Fantástico todos os domingos. Trabalho todos os dias da semana.
Todos os = os
Sabia? Ser claro é obrigação de quem escreve. O artigo definido se presta a confusão de significados. Olho vivo! Al dizer “Deus perdoa os pecados”, englobamos todos os pecados. Se não são todos, o pequenino não tem vez: Deus perdoa pecados. Ora, se o artigo engloba, o todos sobra em muitas situações. Corte-o sem pena: Vou ao teatro todos os sábados. (Vou ao teatro aos sábados.) Todos os funcionário demitidos perderam a gratificação. (Os funcionários demitidos perderam a gratificação.) Queremos todas as crianças na escola. (Queremos as crianças na escola.)
Dois
Acredite. O todo tem alergia ao numeral dois. Todos os dois? Nem pensar. É espirro pra todos os lados. Diga os dois ou ambos: Os dois saíram. Ambos saíram. Só use todos de três em diante.
Unanimidade
Atenção, navegantes de muitas ou poucas viagens. “Todos foram unânimes” é pleonasmo deste tamanho. Unânime é relativo a todos. Seja parcimonioso. Use um ou outro: Todos concordaram. Houve unanimidade.
A Trindade Santa engloba três seres. O Deus Pai, que criou o universo. O Deus Filho, que redimiu os homens. O Deus Espírito Santo, que distribuiu os dons divinos. Conhece-os? São sete. Ei-los: a sabedoria, a inteligência, o conselho, a fortaleza, a ciência, a piedade, o temor de Deus.
Filha dos homens, que são filhos de Deus, a língua persegue as excelências do Espírito Santo. O verbo é seu principal instrumento. Ele fala. Dá o recado. Com ele mostramos as nuanças de pessoa, tempo e modo. Pra chegar lá, impõe-se conjugá-lo como mandam os mestres. Os regulares não oferecem problema. As ciladas se encontram nos irregulares. Sete deles se destacam — mediar & cia, extorquir, falir, perdoar, ler, ter e vir. Vamos enquadrá-los?
Gangue do MARIO
Quatro seres formam quadrilha. Cinco, gangue. A língua tem um quinteto pra lá de conhecido. A primeira letra de cada membro forma o nome da turma: m de mediar (e o derivado intermediar), a de ansiar, r de remediar, i de incendiar e o de odiar. Mediar e remediar são os vilões do bando. Eles desmoralizam reputações ilibadas. Como escapar das maldades da dupla? Recorra a odiar. Os bandoleiros se conjugam como ele: odeio (anseio, medeio, intermedeio, incendeio, remedeio), odeia (anseia, medeia, intermedeia, incendeia, remedeia), odiamos (ansiamos, mediamos, intermediamos, incendiamos, remediamos), odeiam (anseiam, medeiam, intermedeiam, incendeiam, remedeiam).
Extorquir
Eta verbinho mau caráter. Olho nele. Conjugue-o só nas formas em o qu for seguido de e ou i (extorque, extorqui, extorquirá, extorquiria, extorquiremos, extorquiria, extorquia, extorquisse etc. e tal). Eu extorco, que eu extorca? Nem pensar. O qu vem seguido de o e a. Xô, criaturas traiçoeiras. Essas formas não existem. Use sinônimos, como ameaçar, constranger ou usurpar.
Falir
Falir joga no time dos preguiçosos. Defectivo, só se flexiona nas formas em que aparece o i depois do l: falimos, falis, fali, falia, falira, falirá, faliria, falisse.
Sabe a razão da manha? Se ele abrir as porteiras para o a, e ou o, será confundido com falar (falo, fale, fala). Já imaginou? Ninguém quer perder a personalidade. Sobretudo se a língua, pra lá de rica, oferece outras possibilidades de substituir as formas inexistentes: abrir falência, quebrar.
Mais: no sentido de quebrar financeiramente, falir rejeita complemento. Por isso, ninguém pode “falir uma empresa”. Pode fazer uma empresa quebrar.
Perdoar
O vício de Deus? É perdoar. Daí a generosidade do verbo. Ele pode jogar em quatro times:
1. Intransitivo, sem complemento: Perdoa para seres perdoado.
2. Transitivo direto (perdoar alguém ou alguma coisa): Deus perdoa as ofensas. Perdoai os nossos pecados, Senhor. O pai perdoa o filho.
3. Transitivo indireto (perdoar a alguém): A Receita perdoa aos devedores. Deus perdoa aos pecadores. Perdoou aos assassinos do filho.
4. Transitivo direto e indireto (perdoar alguma coisa a alguém): O patrão perdoou aos empregados as falhas cometidas. Deus lhes perdoou os pecados. A lei perdoou a dívida aos devedores.
Ler & cia.
Ler, crer, ver, dar & familiares adoram complicar a vida dos pobres lusófonos. A cilada se esconde no presente do indicativo. A 3ª pessoa do singular termina em ê. A 3ª do plural dobra o e. Assim: ele lê, eles leem; ele crê, eles creem; ele vê, eles veem; que ele dê, que eles deem.
Reparou? A reforma ortográfica cassou o chapeuzinho que aparecia no hiato ee. Os pesadões lêem, crêem, vêem e dêem ficaram mais leves. A família deles foi atrás: releem, descreem, reveem etc. e tal.
Têm, vêm
Parecido não é igual. Mas confunde. Ter e vir são fregueses da troca de Germano por gênero humano. A 3ª pessoa do plural dos dois verbinhos não tem nada a ver com a turma do ver, ler, crer e dar. Ela não dobra o e. E tem acento: ele tem, eles têm; ele vem, eles vêm.
Ver, vir
Ver e vir sofrem como escravos no tronco. O centro da dor encontra-se no futuro do subjuntivo. É um tal de “se eu ver Maria” pra cá, “se eu ver Pedro” pra lá. Perdoai-lhes, Senhor. Os inexperientes pensam que ele vem do infinitivo. Mas na verdade eles se esquecem de que o sofisticado tempo deriva do pretérito perfeito do indicativo. Mais precisamente: da 3ª pessoa do plural menos o am final. Assim:
Pretérito perfeito: eu vim, ele viu, nós vimos, eles vir(am) Futuro do subjuntivo: se eu vir, se ele vir, se nós virmos, se eles virem
Nota 10 para “se eu vir Maria, se eu vir Paulo”. PT saudações.
Que sorte, hein? O gato tem sete vidas. Por quê? Há quem diga que o privilégio se deve às qualidades do bichano. Ele cai de pé. Os músculos, maiores que os dos cães, lhe permitem dar saltos ousados. Exímio equilibrista, o felino se destaca pela agilidade, flexibilidade, destreza, garras afiadas, visão e audição aguçadas. Nem todos concordam com a explicação. Os invejosos atribuem o atributo ao modo de ser egoísta do animal. O peludo cuida muito bem de si. Come e dorme o dia inteiro. Sem medo de ser feliz, sai à noite pra gandaia. Que vidão!
O gato ganhou a fama e dorme na cama. Nem todos, porém, gozam de tais vantagens. Um dos desprezados da sorte é a redação oficial. Os textos da administração pública são pra lá de inflexíveis. Obedecem a normas tão antigas quanto o rascunho da Bíblia. Os funcionários não têm saída. Precisam aprender as manhas, aplicar as regras e poupar energia. Espernear? Muitos tentam. Cometem sete pecados que os condenam às chamas do inferno. Valham-nos, excelências, senhorias, majestades & cia. burocrática.
Burocracia
Você sabia? A palavra burocracia tem dupla nacionalidade. Bureau vem do francês. Na língua de Voltaire e Victor Hugo, quer dizer mesa de trabalho. Krátos nasceu grega. Desde Platão e Aristóteles, significa poderio.
A mocinha fez longa caminhada. No começo da vida, bureau era o tecido grosseiro com que se cobriam as mesas para escrever ou fazer contas. Com o tempo, passou a designar a própria mesa de trabalho. Por fim, chegou ao sentido atual — escritório, repartição.
Pronomes de tratamento
Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Majestade, Vossa Magnificência & demais salamaleques são formas de tratamento da redação oficial. Elas vieram ao mundo na monarquia portuguesa. À época, era proibido se dirigir ao rei. Quem ousasse fazê-lo perdia a cabeça. O jeito foi buscar subterfúgios. Em vez de se falar ao monarca, falava-se à excelência do monarca, à majestade do monarca, à senhoria do monarca. Viu? O jeitinho brasileiro vem de longe. Cada um ficou com um pronome diferente.
Príncipes ficaram com alteza.
Reitores, com magnificência.
Cardeais, com eminência.
Sacerdotes em geral, com reverendíssima.
Autoridades do Estado, com excelência.
Funcionários públicos, com senhoria.
E o papa, com santidade.
Pessoas
Os pronomes de tratamento são cheios de manhas. Ora se referem à pessoa com quem se fala. Pedem, então, ajuda ao possessivo vossa: Vossa Excelência, senhor presidente, fez belo discurso. Vossa Senhoria pode atender o telefone?
Outras vezes, referem-se à pessoa de quem se fala. Trocam, então, o vossa pelo sua. Nada mais muda: Sua Excelência fez belo discurso. Sua Senhoria não costuma atender o telefone.
Concordância
Ops! Não vale bobear. Os verbos e os pronomes relacionados aos pronomes de tratamento são vaquinhas de presépio. Não arredam pé da 3ª pessoa: Vossa Excelência pode repetir a frase? Majestade, não entendi suas palavras.
Viu? Com os pronomes de tratamento, o possessivo vosso não tem vez. Xô!
E o adjetivo? Não deveria concordar com majestade, substantivo feminino? Sim. Mas quem ousaria chamar o rei, tão machão, de divina? Deu-se outro jeito. Criou-se a silepse, figura que permite seja feita a concordância com a ideia, não com a palavra. O adjetivo concorda com o sexo da pessoa, não com o substantivo: Sua Majestade, a rainha Elizabeth, é amada pelo povo. Sua Majestade, o rei Gustavo, também é amado.
Crase
Olho vivo! Pronomes de tratamento começados por Vossa têm alergia ao artigo. Com eles, a crase não tem vez. Por quê? Crase é o casamento de dois aa. Um deles é o artigo. Sem um par, o outro fica solteirinho da silva: Dirijo-me a Vossa Senhoria. Refiro-me a Sua Excelência. Encaminho a Sua Senhoria a carta solicitada.
Só existem quatro exceções - senhora, senhorita, dona e madame: Dirijo-me à senhora.
Anexo, em anexo
Ofícios e memorandos têm uma paixão. Encaminham alguma coisa. Pode ser livros, relatórios e tantos outros documentos que a burocracia adora produzir. Aí, não dá outra. Anexo ou em anexo entram em cartaz. Como usar um ou outro?
Anexo é adjetivo. Como todo adjetivo, concorda em gênero e número com o nome a que se refere: Anexo, encaminho o documento. Anexos, encaminho os documentos. Anexa, encaminho a carta. Anexas, encaminho as cartas.
Em anexo bate à porta de outra freguesia. Locução adverbial, joga no time dos inflexíveis. Sem feminino ou plural, é sempre igual: Em anexo, encaminho os documentos. Em anexo, encaminho o documento. Em anexo, encaminho a carta. Encaminho as cartas em anexo.
Vocativo
O vocativo não se dirige à pessoa. Dirige-se ao cargo da autoridade. Escreve-se com as iniciais maiúsculas (Senhor Diretor, Senhor Presidente, Senhor Chefe). O texto começa sempre com letra grandona: Escrevo-lhe a fim de lhe comunicar o andamento do processo…
Ufa!
Havia seis artes. Seis? Não era número cabalístico. Como chegar ao sete? Em 1911 Ricciotto Canudo escreveu o Manifesto das sete artes. Os entendidos protestaram. Não adiantou. A grande novidade da época abocanhou a denominação. O cinema tornou-se a sétima arte.
O esperneio se explica. Trata-se do signo particular que cada uma utiliza. A música fica com o som. A pintura, com a cor. A escultura, com a forma. A arquitetura, com o espaço. A literatura, com a palavra. A dança (coreografia), com o movimento. E o cinema? Sem cerimônia, misturou todos. O jeito foi concordar.
A língua também faz pactos. Um deles: a concordância. Para conviver com harmonia, estabeleceu hierarquias. O sujeito e o predicado são os mandachuvas. Na flexão do verbo, o sujeito dita as regras. Muitos ignoram o trato. Cometem pecados. Sete deles se destacam.
Sujeito posposto
O português é flexível. Permite que os termos passeiem na frase. O vaivém, porém, não muda as regras. O verbo continua vassalo. Concorda com o sujeito em pessoa e número. Mas nem todos se dão conta da mudança de posição. Quando o sujeito aparece depois do verbo, é tropeço certo. Veja um exemplo:
Na rua onde eu morava, passava meninos de bicicleta.
Ops! Se o sujeito estivesse na frente do verbo, ninguém se machucaria: Na rua onde eu morava, meninos de bicicleta passavam.
Voz passiva
A passiva sintética (construída com o pronome se) é outra tentação. Veem-se, a torto e a direito, placas com “vende-se frutas” ou “aluga-se casas”. Perdoai-nos, sujeitos! Senhor, mostrai-nos o caminho da salvação. Ei-lo: construa a frase com o verbo ser. Se o danadinho ficar no plural, o da passiva sintética vai atrás. Se no singular, idem: vendem-se frutas (frutas são vendidas), alugam-se casas (casas são alugadas), constrói-se muro de pedra (muro de pedra é construído).
Ou
O ou joga em dois times. Ora inclui. Ora exclui. Olho vivo! Se mais de um sujeito pode praticar a ação, é a vez do plural: Um ou outro artista compareceram à festa (nada impede que mais de um artista apareça).
O perigo mora na exclusão. Aí, só um pode reinar. O verbo tem de concordar com ele. É o caso de “Pedro ou Luís será presidente do clube”. Só há uma vaga? O singular pede passagem.
Um dos que
Expressão-gilete, um dos que corta dos dois lados. Topa o singular e o plural. Moleza? Nem tanto. O singular é egoísta. Diz que a ação se refere a um só sujeito: O Tietê é um dos rios da capital paulista que deságua no Paraná. (Só o Tietê deságua no Paraná.) João é um dos candidatos à presidência que ataca o antecessor. (Há vários candidatos. Só João ataca o antecessor.)
O plural joga em outro time. Informa que a ação se refere a mais de uma criatura: João é um dos candidatos à presidência que atacam o antecessor. (Vários candidatos atacam o antecessor. João é um deles.)
Partitivo
Partitivo é parte de um todo. Há expressões partitivas — parte de, uma porção de, grupo de, o resto de, a metade de, a maioria de. Etc. e tal. Quando seguidas de complemento plural, o verbo se esbalda. Pode concordar com o núcleo do sujeito ou com o complemento: A maioria dos candidatos se endividou (se endividaram) na campanha. Metade das frutas apodreceu (apodreceram). A maioria da população do Rio sofreu com as chuvas.
O mais possível
Possível é adjetivo. Concorda com o substantivo (acordo possível, acordos possíveis). O problema pinta na expressão “o mais…possível”. Quando flexionar o trissílabo? Olho no artigo. Possível concorda com ele: Mulheres o mais elegantes possível. Mulheres tentadoras o mais possível. Os maiores esforços possíveis.
Quem
Fui eu quem comprei o livro? Fui eu quem comprou o livro? Ah! O verbo morre de paixão pelo quem. Mas é super hiper extra flexível. Se exigirem, concorda com o pronome pessoal: Fui eu quem comprou o livro. Fui eu quem comprei o livro. Fomos nós quem compramos o livro. Fomos nós quem comprou o livro. Foram eles quem compraram o livro. Foram eles quem comprou o livro.
Existem os sete pecados mortais. Eles estão à nossa volta. Tentam-nos. Nós, fracos mortais, caímos na deles. Aí, não dá outra. Marchamos rumo às chamas do inferno. Como fugir de tão forte atração? Deus, que não brinca em serviço, deu a resposta. Criou as sete virtudes. São antídotos eficazes. Contra a luxúria, a castidade. Contra a avareza, a generosidade. Contra a gula, a temperança. Contra a preguiça, a diligência. Contra a ira, a paciência. Contra a inveja, a caridade. Contra a vaidade, a humildade.
Com eles o chifrudo mete o rabinho entre as pernas e bate à porta de outra freguesia. O mesmo ocorre com a língua. O falante desavisado cai na tentação de pecar contra gêneros, números, flexão e significados. Um dia, descobre que a forma não é bem aquela. Oba! Toma o rumo certo. Deixa o desvio pra lá e faz as pazes com Deus, os homens e os imortais. Que tal acompanhá-lo? Juntando-nos aos bons, seremos um deles.
Tempestivo, intempestivo
Atenção, marinheiros de poucas viagens. Tempestivo e intempestivo não têm parentesco nem remoto com temperamento. Dizer que alguém é tempestivo em vez de temperamental? Nem pensar. Pega mal como andar sem cinto de segurança ou dirigir acima da velocidade da via. Xô!
Tempestivo pertence à família de tempo. Significa no tempo certo, oportuno: O recurso foi apresentado tempestivamente (dentro do prazo).
Intempestivo é o contrário. Quer dizer fora do prazo: A ação foi ajuizada fora do prazo previsto em lei. Foi intempestiva.
Não confunda com tempestuoso, que se refere a tempestades.
Alface
As chuvas que despencaram na serra fluminense fizeram estragos. Entre eles, o sumiço das verduras. O assunto virou notícia. Sobressaiu, então, pecado cada vez mais comum. A troca do gênero de alface. A verdinha gostosa e calmante é feminina sim, senhor: a alface, a alface americana, alface crespa. Trocou, a folha não desce. Engasga.
Milhar, milhão
Milhar e milhão viraram fregueses. Quando seguidos de nome feminino, não dá outra. Vestem-nos de saia. É comum ouvir “as milhares de vítimas”, “duas milhões de crianças”, “foram recebidas milhões de declarações”. Valha-nos, Deus! Xô! Xô! Xô! Milhar e milhão são machinhos da silva. Numeral, artigo e adjetivo concordam com eles: os milhares de vítimas, dois milhões de crianças, foram recebidos milhões de declarações.
O numeral mil, por não ser substantivo, recebe tratamento diferente, com ele deve ser flexionado de acordo com o gênero: três mil ingressos, quatro mil pessoas.
Moral
O moral? A moral? As duas formas se escrevem do mesmo jeitinho. Mas uma é macha. A outra, fêmea. Muita gente não sabe disso. Na maior ingenuidade, mistura Germano com gênero humano. O resultado é um só. Pensa que está dando um recado. Dá outro. Pior: não dá recado nenhum.
Os jovens dificilmente falam em o moral. Preferem astral. Há pessoas que têm alto astral. Outras, baixo astral. É o mesmo que moral alto e moral baixo. No masculino, a dissílaba quer dizer estado de espírito, disposição de ânimo. Quer moral mais baixo que o do goleiro que leva frango? Nem precisa ser jogo decisivo.
A moral significa norma de conduta, moralidade. Nessa acepção, só o feminino tem fez. Aprecie: A moral nacional depende da cultura de cada povo. Você sabe qual a moral da fábula? Ih! Lá vem lição de moral.
Óculos
Óculos joga no time de férias, pêsames e núpcias. Só se usa no plural. Não tem exceção, a menos que você queira inventar novas regras para a gramática: Onde estão meus óculos? Comprei dois óculos escuros. As férias são sempre bem-vindas.
Mulherezinhas
O plural de palavras que fazem o diminutivo com o acréscimo do sufixo -zinho tem exigências. Para chegar a ele, há que percorrer três etapas. A primeira: pôr a palavra primitiva no plural. A segunda: retirar o s. A última: acrescentar o sufixo zinhos: animal, animais, animaizinhos; bar, bares, barezinhos; botão, botões, botõezinhos; cão, cães, cãezinhos; mulher, mulheres, mulherezinhas; homem, homens, homenzinhos.
Seriíssimo
Sabia? Há superlativos que dobram o i. Só cinco ou seis adjetivos têm essa manha. Quais? Os terminados em -io: frio (friíssimo), macio (maciíssimo), necessário (necessariíssimo, precário (precariíssimo), sério (seriíssimo), sumário (sumariíssimo). Contudo, nos cursos de Direito, usa-se sumaríssimo.
Eram nove conhecidos. Mas os antigos preferiram o número cabalístico. Os sete mares — o Adriático, o Arábico, o Cáspio, o Mediterrâneo, o Negro, o Vermelho e o Golfo Pérsico — inundaram a literatura medieval. Há quem diga que a expressão nasceu nas páginas das Mil e uma noites. O marinheiro Simbad, um dos personagens das aventuras contadas por Sherazade, precisava levar mercadorias a portos distantes. Para chegar lá, navegava por sete mares. Com o tempo, as duas palavras ampliaram o significado. “Navegar por sete mares” é viajar muito, sonhar muito, entregar-se a aventuras nunca dantes sonhadas.
A língua convive com façanhas semelhantes. Trata-se dos cruzamentos. Sem entender o quê ou o porquê, criaturas atrevidas embarcam em delírios linguísticos. Misturam alhos com bugalhos. Tomam pedaço de uma estrutura e o juntam a pedaço de outra. É como cruzar elefante com gato. O resultado? Valha-nos, Deus! É a receita do cruz-credo. Quer ver? Eis os sete pecados da combinação heterodoxa.
Já x mais
Nas indicações temporais, existem dois bicudos. Um deles: já. O outro: mais. Como diz o outro, eles não se beijam. Onde couber um, o outro não terá vez. Assim: Quando os bombeiros chegaram, as vítimas já não respiravam. Já não há lei que iniba a invasão dos morros. Quando entregou o projeto, não se preocupou mais.
Olho vivo: Quando os bombeiros chegaram, as vítimas já não respiravam mais? Já não há mais lei que iniba as invasões? Quando entregou o projeto, já não se preocupou mais? Xôôôôôôôôôôô! É cruzamento.
À medida que x na medida em que
Parecido não é igual. Mas confunde. Um dos nós que enroscam os miolos são as locuções à medida que e na medida em que. Trio e quarteto têm significados próprios. Com personalidade forte, detestam trapalhadas. Quilômetros de distância as separam:
À medida que = à proporção que: À medida que exercito a leitura, leio melhor. À medida que conhecia o amigo, encantava-se com as qualidades que demonstrava. Aumentava as risadas à medida que ouvia as loucuras do viajante.
Na medida em que = porque, tendo em vista: A tragédia das chuvas se repete na medida em que não se tomam medidas corretivas e preventivas. A mortalidade infantil cai no Brasil na medida em que se deu mais atenção ao pré-natal.
Cuidado: na medida que? À medida em que? Ops! É cruzamento. Xô!
A medida que sem crase, existe apenas quando o que é pronome relativo: A medida que ele tomou foi drástica.
De … a
Na língua há casaizinhos. Eles têm uma marca. São pra lá de leais. A estrutura dos dois pares é a mesma. É o caso de de … a. De é preposição pura. A vai atrás. Com a duplinha, por isso, a crase não tem vez: Trabalho de segunda a sexta. Estudo de domingo a domingo. Viajamos de segunda a quinta.
Das … às
Eis outro casalzinho. Das se forma da preposição de + o artigo a. Às, fiel parceiro, também exibe preposição (a) + artigo. Daí a crase: Corro da Rua da Praia à Rua dos Andradas. Estudo das 8h às 18h. Meu expediente: de segunda a sexta das 14h às 20h.
De…à? Das…as? Nem pensar. É cruzamento.
Ainda x mais
A língua abriga mais bicudos do que imagina nossa vã filosofia. Além do já x mais, temos o ainda x mais. Um dispensa o outro: O programa ainda vai levar cinco meses. O programa vai levar mais cinco meses.
Ops! O programa ainda vai levar mais cinco meses? Nem a pedido de Deus. O cruzamento leva o autor a arder nas chamas do inferno. Eternamente.
Ainda x continua
Viu? O ainda indica continuidade. O continua também. Misturar os dois dá briga. Fique com um deles: Apesar do despreparo físico, Ronaldo continua ídolo dos brasileiros.
Uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Ronaldo ainda continua ídolo dos brasileiros? Virgem Maria, protegei-nos. Livrai-nos da ira divina.
A partir x começar
Atenção, marinheiros de poucas viagens. A partir significa a começar. Usar os dois dá confusão. Sem preguiça, escolha um ou outro: A partir de domingo, o metrô terá novo horário. O novo horário do metrô começa domingo.
A partir de domingo o metrô começa a circular em novo horário? Que desperdício! Deus castiga.
Inveja mata? Mata. Mas também cria. O invejoso tem manhas. Tenta destruir o invejado. Se fracassa, não desiste. Esforça-se para superar o objeto do desejo. Impossível? Parte pra outra. Luta para igualar-se a ele. Vale o exemplo das sete maravilhas do mundo. Os antigos fizeram uma lista de tirar o fôlego. Os Jardins Suspensos da Babilônia, as Pirâmides de Gizé, a Estátua de Zeus, o Templo de Ártemis, o Mausoléu de Halicarnasso, o Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria extasiam os filhos de Deus por séculos e séculos.
Os homens contemporâneos não se conformavam diante de tantas loas e tantos suspiros. Decidiram quebrar o monopólio dos antepassados. Como? A New Open World Foundation achou a resposta. Lançou na internet a campanha As sete maravilhas do mundo moderno. Bombou. Mais de 100 milhões de pessoas votaram. Eis o resultado, anunciado há três anos em data cabalística – 07/07/07: Muralha da China, Petra, Cristo Redentor, Machu Picchu, Chichén Itzá, Coliseu, Taj Mahal.
Alguns adoraram a escolha. Outros a detestaram. O mesmo ocorreu com a reforma ortográfica. As mudanças na grafia das palavras despertaram paixões e iras. Sobraram esperneios. Houve até quem propusesse campanha pra boicotar a novidade. Não adiantou. Jornais, revistas, dicionários, livros didáticos adotaram-na. Por ora convivem as duas grafias. Mas em 1º de janeiro de 2013 só a jovem terá vez. A sabedoria aconselha acolhê-la. Sete pecados devem ser evitados. Quais?
Grafia
Olho vivo! A reforma é ortográfica. Só altera a grafia das palavras. Em bom português: alcança letras, acentos, tremas e hifens. Pronúncia, crases, concordâncias, regências continuam como dantes no quartel de Abrantes.
Pronúncia
O trema caiu. Mas o som do u se mantém. Frequente, tranquilo, aguentar, sequestro, cinquenta, pinguim, consequência, bilíngue, linguiça, ambiguidade, sequência & cia. perderam o sinalzinho charmoso. Mas continuam a ser pronunciados como se nada tivesse acontecido.
Alfabeto
Oba! Nosso alfabeto caiu na real. Convidou três excluídos para compor o abecedário. K, y e w, que sempre frequentaram nossa língua em abreviaturas, fórmulas e nomes próprios, se juntaram às velhas 23 letras. Agora, a família tem 26 membros.
Atenção, cristãos novos. Nada muda. As palavras continuam com a mesma cara. Uísque, por exemplo, pediu a nacionalidade portuguesa há muito tempo. Foi atendido. Deixou o w pra lá e virou amigão de Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa. Show e shopping não têm versão brasileira Telecine. Ainda não existem xópin nem xou.
Paroxítonas
Você sabia? A reforma só atingiu as paroxítonas. As oxítonas e proparoxítonas escaparam ilesas. Daí a aparente incoerência da mudança. Os ditongos abertos servem de exemplo. Éi e ói perderam o grampinho nas paroxítonas ideia e heroico & cia. Mas o conservam nas oxítonas como papéis e herói. É a tal história: se podemos complicar, pra que simplificar?
Monossílabos
Ops! Generalizar é proibido. Monossílabos tônicos obedecem às regras de acentuação das oxítonas. Mas oxítonas não são. A razão? Para que a fortona caia na última sílaba, a palavra precisa ter pelo menos duas. Elas só têm uma. A pobre solitária recebe classificação à parte.
Acentos diferenciais
“Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, diz o povo sabido. A reforma lhe dá razão. Cassou os acentos diferenciais de para (do verbo parar), pelo (do gato, do cachorro, de pessoas), pelo (do verbo pelar), polo (as extremidades da Terra), pera (fruta ou barbicha). Reparou? São todas paroxítonas.
Pôr não entrou na faxina. O porquê está na cara. O verbo é monossílabo. Também se manteve fora da limpeza o pôde, pretérito perfeito de poder (ontem ele pôde, hoje não pode). A razão? É a exceção que confirma a regra.
Feiura e saúde
Confundir Germano com gênero humano? Nem pesar. O embaralhar dos miolos cobra preço alto. Rouba pontos na prova, adia promoções, mata amores. Valha-nos, Deus! Dói menos no bolso e na vida aprender que a reforma aliviou o peso do u e do i antecedidos de ditongo. É o caso de feiura, baiuca, Sauipe. O u e o i antecedidos de vogal não têm nada a ver com a história. Continuam como sempre foram: saúde, saída, baú.
O número preferido da Bíblia? É o cabalístico sete. Ele representa a completude. Eis por que Deus criou o mundo em sete dias. Definiu sete pecados capitais. Enumerou sete virtudes. Expulsou sete demônios do corpo de Maria Madalena. Mandou que perdoássemos sete vezes 70. E contou a história de amores. É o caso da paixão de Jacob por Raquel. Ele serviu o pai da moça durante sete anos. Passado o tempo de servidão, cadê? Em vez da amada, recebeu a irmã. Não desanimou. Ofereceu outros sete anos de labor para ter a mulher querida. O drama do casal inspirou poetas e pintores. Entre eles, Camões. Eis o soneto:
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!
Entre dois amores
A língua aprendeu a manha de Labão. Oferece duas opções. A gente escolhe uma ou outra. Acerta sempre. É o caso de catorze ou quatorze. Loiro ou louro. Cota ou quota. Diabete ou diabetes. Caminhante ou caminheiro. Câmera ou câmara. Cociente ou quociente. Cotidiano ou quotidiano. Hein ou hem. Infarto ou enfarte. Mas há as que bancam o pai da bela. Fingem ter duas grafias, mas não têm. São sete.
Cinquenta
Desavisados pra lá de confiantes escrevem cincoenta. Bobeiam. A trissílaba, morta de rir, sai por aí cantando: “Enganei o bobo na casca do ovo”. Cruzes! Fuja da gozação. Guarde isto: cinquenta, cinquentenário, cinquentão e cinquentona só têm uma forma. Cinquenta não vem de cinco.
Curinga
Você gosta de um baralhinho? Buraco, pôquer, mata-mata, sete e meio, tanto faz. Mas saiba: a carta de jogar se chama curinga, com u. Muitos, temerosos com a separação das sílabas, escrevem coringa. Ops! Com o, a palavra dá nome à vela de embarcação.
Boteco
Que tal beber umas e outras? Os belo-horizontinos adoram. A paixão é tanta que eles promovem o Festival do Boteco. Assim, com o. Escrever buteco? Nem pensar. Como o vocábulo não tem vez no dicionário, a festa desapareceria. Valha-nos, Baco!
Jabuticaba
Sabia? Jabuticaba só existe no Brasil. A jabuticabeira é generosa que só. Enche o tronco e os galhos com a frutinha gostosa. A gente começa a comer e não consegue parar. Que delícia! Ops! Escrever jaboticaba? Nãooooooooooooooooo! Dá indigestão gramatical.
Camundongo
O roedor esperto que faz estragos em armários e despensas? É ele mesmo, o camundongo. Assim, com u.
Tabuada
Aprender a tabuada é como aprender a conjugação verbal. Em ambos os casos, flexionam-se dois verbos. Um: repetir. O outro: decorar. Com um cuidado: tabuada vem de tábua — com u.
Mendigo, reivindicar
Leia as duas palavras em voz alta. Repita-as sete vezes. Guarde a posição do n. Muita gente muda a nasalzinha de lugar. Maltrata mentes e ouvidos. Olho vivo! Língua afiada!
Maravilha tem sinônimos. Um deles: fascínio. Outro: perfeição. Muitos outros: admiração, deslumbramento, êxtase, primor, fenômeno, milagre. O mundo tem maravilhas. Há as antigas, as medievais e as modernas. As mais vetustas ganharam notoriedade um século e meio antes de Cristo. Lá se vão 2.150 anos. Os gregos, fascinados pela majestade de monumentos e esculturas feitos pelo homem, enumeraram sete: a Pirâmide de Quéops, os jardins suspensos da Babilônia, A estátua de Zeus em Olímpia, o templo de Ártemis em Éfeso, o Mausoléu de Halicarnasso, o Colosso de Rodes e o Farol de Alexandria.
As palavras são como remédios, podem matar.
Escritores também produziram obras que encantam gerações sem discriminação de tempo, sexo ou idade. Os que vieram antes abriram caminho para os que vieram depois. E para os que virão. Todos têm uma marca. Sintonizam-se com a época em que vivem. A atual se caracteriza pela vaidade. Pneuzinhos nas costas? Estômago exibido? Barriga nutrida? Coxas atrevidas? Vem, Pitanguy. A língua também adora ser enxutinha. Quer tudo no lugar. Gordurinhas aqui e ali? Xô! O cirurgião plástico manda as adiposidades bater em retirada. Quais?
Um, uma
Você tem um jornal à mão? Escolha uma matéria. Leia-a. Depois, risque os artigos indefinidos. Volte a ler o texto. Reparou? O um e o uma não fazem falta. Ao contrário. Tornam o substantivo vago, impreciso, molengão. Em 99% dos casos, é gordura pura. Xô! Sem ele, o texto agradece. O leitor também: Dilma mereceu (uma) recepção calorosa. O Brasil tem (uma) nova presidente. Há (umas) grandes expectativas em relação ao novo governo.
Seu, sua
“Livro-me dos vocábulos que estão na frase só para enfeitar ou atrapalhar”, repetia George Simenon. O autor de romances policiais com certeza pensava nos possessivos seu, sua. Às vezes, eles tornam o enunciado ambíguo; outras, sobram. Veja: No (seu) pronunciamento de posse, o governador fez promessas. Antes de sair, olhou para o (seu) rosto e as (suas) mãos. Ao chegar, tirou os (seus) óculos.
Aquele, aquela, aquilo
“O que é isso, companheiros?” Por alguma razão que nem Deus explica, os demonstrativos aquele, aquela, aquilo usurpam o lugar dos pequeninos o, a. Em vez dos discretos monossílabos, a turma empanturra a frase com os pesadíssimos trissílabos. Pau neles! Veja: Aqueles que nunca pecaram atirem a primeira pedra. (Quem nunca pecou atire a primeira pedra.) Aquilo que é escrito sem esforço é lido sem prazer. (O que é escrito sem esforço é lido sem prazer.)
Locução adjetiva
Lembre-se: menos é mais. Menos palavras é mais concisão. Material de guerra (bélico). Criança sem educação (mal-educada). Líquido sem cheiro (inodoro). Pessoa sem emprego (desempregada).
As duplinhas preposição + substantivo podem ser trocadas por pares de substantivo e adjetivo.
Orações adjetivas
Pessoa que não come carne (vegetariana). Homem que planta café (cafeicultor). Criança que não sabe ler nem escrever (analfabeta). Brasília, que é a capital do Brasil, tem 2,5 milhões de habitantes. (Brasília, a capital do Brasil, tem 2,5 milhões e habitantes.)
Formas longas
Pôr as ideias em ordem é ordenar as ideias. Pôr moeda em circulação é emitir moeda. Fazer uma viagem é viajar. Ver a beleza do quadro é admirar o quadro.
Mais: Este trabalho visa analisar as causas da violência doméstica. (Este trabalho apontará as causas da violência doméstica.) Esta tese busca discutir o preconceito racial nas escolas. (Este trabalho analisa o preconceito racial nas escolas.) O cantor pode apresentar nova canção durante o espetáculo. (O cantor apresentará nova canção durante o espetáculo.)
Blá-blá-blá
O desnecessário sobra. Se sobra, não faz falta. Se não faz falta, xô! Curso em nível de pós-graduação? É curso de pós-graduação. Decisão tomada no âmbito do partido? É decisão do partido. Doença de natureza sexual? É doença sexual.
Da mesma forma que o desenho não deve ter linhas desnecessárias e a máquina, peças desnecessárias.
Hidra era uma cobra de arrepiar os cabelos. Tinha corpo de dragão e seis pescoços que sustentavam sete cabeças. A principal ficava no meio. A serpente espalhava veneno sobre o corpo todinho. Por isso ninguém podia chegar perto dela. Além do risco, o cheiro era insuportável.
Deuses, homens, mulheres e crianças morriam de medo do monstro. Muitos tentaram matá-lo. Mas não conseguiram. Quando lhe cortavam uma cabeça, ela renascia com força total. E soltava um odor… Pior que pum de 20 meninos juntos. Todos saíam de perto.
E daí? Chamaram Hércules para acabar com a criatura. Ele pediu a ajuda de um amigo. Os dois fizeram um trato. Hércules decepava uma cabeça da fera. Imediatamente o companheiro queimava o pescoço dela com uma tocha. A cabeça não renascia. Assim foi seis vezes. Aí, Hércules cortou a cabeça principal. A Hidra morreu.
Daí nasceu a a expressão cabeça da hidra. Ela tem um significado muito especial. Quer dizer fonte sem fim de coisas ruins. A gente corrige uma falha. Pinta outra. E outra. E outra. Ufa! Na língua ocorre o mesmo. Vale o exemplo do artigo. Gramáticas e manuais alertam para as trapaças do pequenino. Todos entendem. Prometem seguir a orientação dos mestres. Mas na hora de aplicar… Os vícios voltam firmes e fortes. É a cabeça do monstro grego. Valha-nos, Hércules.
O indefinido
As palavras, como os remédios, podem matar. O artigo indefinido, medicamento de tarja preta, causa estragos. Torna o substantivo vago, impreciso, molengão. Em 99% das frases, é gordura pura. Corte-o. Assim: Na posse, os convidados usaram (uma) roupa clara. As mulheres esperam viver (uma) nova era no Brasil. Haverá (umas) reconduções no primeiro escalão do governo.
Outro
Ops! O pronome outro tem aversão à obesidade. Lipoaspiração é com ele mesmo. Sabe qual é a primeira vítima do motorzinho? O artigo indefinido. Escrever ou falar “um outro”? Valha-nos, Senhor. Xô! Melhor mandá-lo plantar batata onde judas perdeu as botas: Comprou (um) outro vestido pra curtir o réveillon. Espera receber o ano-novo com (uma) outra companhia. Vendeu o champanhe para (um) outro freguês.
O definido
Ser claro é obrigação de quem escreve. O artigo definido se presta a confusão de significados. Ao dizer “os estudantes fizeram greve”, engloba-se a totalidade da moçada. Se não é a totalidade, o pequenino não tem vez: Estudantes fazem greve.
Todos os
Ora, se o artigo engloba, o todos sobra em muitas situações. Corte-o sem pena: Vou à missa todos os domingos. (Vou à missa aos domingos.) Todos os ministros que saem partem com saudade do poder. (Os ministros que saem partem com saudade do poder.) Todas as pessoas que se expõem ao sol correm risco de contrair câncer de pele. (As pessoas que se expõem ao sol correm risco de contrair câncer de pele.)
Ambos
Ambos joga no time das polarizações. Com ele é oito ou 80. Ou anda sozinho, ou acompanhado. Na primeira equipe, não oferece problema. Veja: Ambos saíram. Gosto de ambos. Trabalho com ambos sem problemas.
Na segunda equipe é que a porca torce o rabo. Seguido de substantivo, o dissílabo exige — exige mesmo — o artigo. Assim: Ambos os filhos visitaram os pais. Ambas as provas do Enem foram alvo de críticas. Ambos os países sobressaíram no debate.
Chamar a atenção
Olho vivo! Chame a atenção de alguém. Assim, com artigo: O maestro chamou a atenção dos músicos. Chame a atenção dos presentes. Não gosto que me chamem a atenção.
Cujo
O pronome relativo cujo sofre de grave intolerância. Não suporta o artigo. O bom senso manda respeitar-lhe as idiossincrasias: Lula, cuja candidata foi eleita, deixou o poder no sábado. Paulo Coelho, cujos livros fazem sucesso mundo afora, mora em Paris. O funcionário cujo salário é mais curto que o mês vai à luta.
Deus criou o mundo em sete dias. Daí o sete ser o número da completude. Que nome dar ao suceder dos dias e das noites? Eureca! Os romanos encontraram a resposta. Consagraram cada amanhecer a uma divindade da mitologia. O primeiro ficou com o deus Sol. O segundo, com a deusa Lua. O terceiro, com Marte, o deus da guerra. O quarto, com Mercúrio, o deus da eloquência. O quinto, com Júpiter, o deus do raio e do trovão. O sexto, com Vênus, a deusa do amor. O sétimo, com Saturno, o deus do tempo.
Com o cristianismo, as coisas mudaram. Lá pelo quinto século, a Igreja decidiu:
— Vamos depurar o latim. Xô, expressões do mundo pagão!
Pronto. A semana foi purificada. Os dias ganharam nomes referentes ao universo cristão ou nomes neutros. Algumas línguas desconheceram a mudança. Outras só adotaram o sábado e o domingo. O português, que nasceu no século 13, aceitou-a integralmente.
O sábado veio do latim sabbatum, que veio do hebraico Shabat - dia de descanso para os judeus e adventistas. (“Deus descansou no sétimo dia”, diz a Bíblia.)
Dia do Sol virou domingo, de dominica - dia do Senhor (Cristo ressuscitou no domingo). Os outros dias são dedicados ao trabalho. Feira, em latim, significa mercado. Segunda-feira é o segundo dia da semana.
Com a novidade, nasceram os nomes compostos. Com eles, o hífen —segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira e sexta-feira. Com o hífen, o castigo de Deus. O emprego do tracinho é tão confuso que nem o Senhor consegue memorizar as regras. O jeito é comer pelas beiradas. Aprender aos poucos. E, em caso de aperto, pedir socorro ao dicionário. Comecemos pelo vocabulário que marca a virada do calendário.
Ano-novo
Atenção, cristãos novos. Ano-novo é substantivo comum. Vira-lata, escreve-se com as iniciais minúsculas, exceto em início de frase. Tem plural: Feliz ano-novo. Passei dois anos-novos na praia. A festa do réveillon recebe o ano-novo com música, champanhe e boa comida.
Boas-entradas
Fim de ano tem uma marca. É o clima de festa e boas intenções. A língua faz o que as pessoas querem que faça. Criou boas-entradas. Trata-se dos cumprimentos e votos de felicidades que se desejam no princípio ou no fim do ano. A dupla funciona também como interjeição:
— Boas-entradas!, saudamos conhecidos e desconhecidos.
Boas-vindas
Parentes e amigos se mexem. Saem de casa e visitam os entes queridos. Os homenageados não deixam por menos. Recebem-nos com expressão de acolhimento afetuoso e hospitaleiro: Boas-vindas!
Boa-nova
Notícia feliz, novidade fortunosa? É boa-nova. Se uma borboleta branca entrar em casa, oba! É boa-nova. O plural? Boas-novas.
Bom-dia
Bom-dia, flor do dia. Como vai a tia? Toma banho na bacia? Com água fria? Na Bahia? Ops! Tanta rima tem razão de ser. Lembra que a saudação não anda sozinha. Vem acompanhada e ligadinha.
Boa-tarde e boa-noite jogam no mesmo time. “Boa-tarde”, dizemos ao entrar no elevador depois do meio-dia. “Boa-tarde”, responde o outro. Se o escurinho pareceu, o boa-noite pede passagem.
Meia-noite
Meia-noite marca o fim de um dia e o começo de outro. Ao bater as 12 badaladas, o relógio anuncia o ano-novo. Viva!
Meio-dia também forma casal. Vem preso por senhora aliança: Eu almoço ao meio-dia. E você?
Tim-tim
Os animados recebem 2011 com champanhe. Que tal um brinde? Tim-tim.
Dizem por aí que o sete é o número preferido de Deus. Como a Skol, ele desce redondo. Daí o Senhor ter criado o mundo em sete dias, ter dado sete cores ao arco-íris, ter definido sete sacramentos, ter fixado sete pecados capitais, ter ditado sete virtudes, ter aberto sete chacras no corpo humano, ter dado sete vidas ao gato, ter definido sete dons para o Espírito Santo.
Na Bíblia, o sete é grande vedete. Sete foram os pãezinhos que Jesus multiplicou pra dar comida à multidão. Depois do banquete, sobraram sete cestos cheinhos. Cristo expulsou sete demônios do corpo de Maria Madalena. Sete pessoas foram as únicas que se salvaram com Noé das águas do dilúvio. Sete é a metáfora do incontável:
Pedro queria saber o limite do perdão. Aproximou-se de Cristo e perguntou:
— Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?
Respondeu Jesus:
— Não te digo até sete vezes, mas até 70 vezes sete.
Tão sagrada criatura pertence ao clã dos numerais. Tratar bem os membros da família agrada a Deus e aos homens. Mas nem todos são tementes ao Todo-Poderoso. Há os pecadores. Eis os atos que entristecem o Senhor e enchem o diabo de alegria.
Zero à esquerda
Zero à esquerda? É nulidade. Poupe tempo e espaço. Em datas, em vez de 05.04.2010, escreva 5.4.10 ou 5.4.2010. Viu? A informação não perde nada. A mesma economia vale para escrita de numerais em geral: Em vez de havia 02 pessoas na sala, fique com havia 2 pessoas na sala. Por quê? Você não diz havia zero duas pessoas na sala.
Eu sozinho
Catorze alterna com quatorze. Mas cinquenta é única. Xô, cincoenta!
Bruxaria
Os numerais são mágicos. Número determinado vira indeterminado. É o caso do “até 70 vezes 7” bíblico. Cristo não quis dizer 490 vezes, mas infinitas vezes. É o caso, também, do cardinal mil. Desde os começos da língua, ele se presta pra expressar indeterminação exagerada. Olho vivo. Ele não tem plural: Em abril, chuvas mil. Fez promessas mil durante a campanha. Apresentou propostas mil pra vender o produto. O Bombril tem mil e uma utilidades.
Primeirão
Não caia no simplismo. O primeiro dia do mês tem privilégios. Só ele é ordinal. Os demais embarcam na canoa do cardinal: Primeiro de janeiro abre as portas do ano-novo. Os gregos não tinham o 1º dia do mês. Viajou no dia 2.
Alergia
Há numerais que sofrem de alergia. Um deles é dois. Ele não tolera o pronome todos. Todos os dois? Saia de perto. É espirro pra todos os lados. Diga os dois ou ambos.
Outro é o ordinal. Com os números que indicam ordem, o hífen não tem vez. Escreva sem medo de errar: décimo primeiro, quinquagésimo quarto, milésimo trigésimo segundo. Seja o numeral ordinal, seja o pagamento que os trabalhadores recebem no final do ano, décimo terceiro não tem hífen.
Sem pedigree
Numeral pertence às espécies vira-las. Sem privilégios, concorda com o nome a que se refere (dois livros, duas cadeiras, trezentos carros, trezentas casas). Moleza? É. Mas muitos bobeiam. Dizem “trezentos e quarenta e uma declarações”. Ops! Fazem o trabalho pela metade. Como não existe meia gravidez, não existe meia concordância. Demos ao trezentos o que é do trezentos. Assim: trezentas e quarenta e uma declarações.
Milhar, milhão & cia. são machinhos e não abrem. Os distraídos se esquecem do sexo da moçada. Quando seguidos de nome feminino, não dá outra. Travestem os coitados. Dizem “duas milhões de pessoas” ou “foram liberadas milhões de moedas”. Viu? É a receita do cruz-credo. Respeito é bom e a turma do milhão adora: dois milhões de pessoas, foram liberados milhões de moedas.
Pegadinha
A vírgula joga no time dos gozadores. Adora pegadinhas. Quando o desavisado cai na cilada, ela, morrendo de rir, sai cantando o tal enganei o bobo na casca do ovo. Contra a sabida, só há uma saída — a atenção plena. Concorde com o número que vem antes da vírgula: 1,2 milhão; 0,4 bilhão; 13,5 milhões.
Sacramento vem de sacra. A dissílaba quer dizer sagradas palavras. O significado tem tudo a ver com a missa. Para a memória não trair o celebrante, colocava-se sobre o altar o texto das três partes fixas da cerimônia. Assim, não havia desculpa. Vacilou? Os quadros estavam lá pra acordar o distraído.
“Crescei e multiplicai-vos”, ordenou o Senhor. Sacra obedeceu. Formou enorme família. Entre filhos, netos, sobrinhos e primos, destacam-se sacro, sacristia, sacramento, sacramentar, sacrário, sacristão, sacrifício, sacrílego, sacrilégio. Todos têm um denominador comum — a relação com o sagrado.
Sacramento merece tratamento privilegiado. Cristo o instituiu para distribuir a salvação divina aos que, recebendo-o, fazem profissão de fé. São sete: batismo, crisma, eucaristia, confissão, ordenação, casamento, extrema-unção.
Sete são também os verbos que nos fazem pecar contra a conjugação. Eles empurram o falante para longe do sagrado. Valha-nos, Senhor! Foi sem querer. Então, como diz Gregório Marañón, “é seguro que Deus preferirá julgar-nos pelos propósitos que nos acompanham cada manhã ao sair de casa e não pelas culpas com que voltamos ao anoitecer”.
Cear
Natal e réveillon conjugam dois verbos à exaustão. Trata-se de cear e presentear. Ambos se apresentam com vestes angelicais, mas escondem tentações ameaçadoras. O perigo mora no presente. Eu, tu, ele, eles exibem um vistoso i. O nós e o vós não lhe dão vez. Veja: ceio (presenteio), ceias (presenteias), ceia (presenteia), ceamos (presenteamos), ceais (presenteais), ceiam (presenteiam).
Só existe um verbo terminado em eiar: veiar - que vem de veio e veia.
Possuir
Ops! Cuidado com aquela força irresistível que nos empurra para a perdição. Quando ela atacar, pare, pense e reze. Possuir pertence à 3ª conjugação. Mas foge à regra. O desvio reside na 3ª pessoa do singular. Os irmãozinhos terminam com e (ele parte). Possuir pulou a cerca Trocou o e pelo i. Muita gente desconhece o resultado. Escreve “possue”. Peca. A saída? Ajoelhar-se, pedir a compaixão divina e aprender a lição: eu possuo, ele possui, nós possuímos, eles possuem. (A regra vale para a turma uir. Entre eles, contribuir, retribuir, concluir, substituir, distribuir: ele contribui, retribui, conclui, substitui, distribui). Só existem três diferentões: construir, destruir e reconstruir, que fazem constrói, destrói e reconstrói.
Continuar, situar, habituar, acentuar, efetuar, atenuar são diferentes, terminam com E: continue, situe, habitue, acentue, efetue, atenue. E toda a turma uar.
Intervir
Quem vê cara não vê coração? Às vezes, vê. Intervir serve de exemplo. Filhote de vir, conjuga-se como o paizão: eu venho (intervenho), ele vem (intervém), nós vimos (intervimos), eles vêm (intervêm); eu vim (intervim), ele veio (interveio), nós viemos (interviemos), eles vieram (intervieram). E por aí vai. Muitos vão contra os mandamentos gramaticais. Juram que intervir deriva de ver. Escrevem “interviu”. Pecam contra a língua. Que peçam perdão a Deus. Ele, generoso, dirá sim. Afinal, perdoar é o grande vício do Senhor.
Mediar e remediar
Pai e filho dão tremenda dor de cabeça. Mediar e remediar fazem parte da gangue do MARIO. Conhece? O nome da turma barra pesada se formou com a letra inicial de cada membro — mediar, ansiar, remediar, incendiar e odiar. Todos se conjugam como odiar: odeio (medeio, anseio, remedeio, incendeio), odeia (medeia, anseia, remedeia, incendeia), odiamos (mediamos, ansiamos, remediamos, incendiamos), odeiam (medeiam, anseiam, remedeiam, incendeiam). O verbo mediar tem um irmãozinho (derivado), intermediar - que também segue o modelo do odiar (intermedeio, intermedeia, intermediamos, intermedeiam).
Viger
Olho vivo! “Vigir” não existe. A forma é viger. Intolerante, ele odeia o a e o o. Por isso só se conjuga nas formas em que essas vogais não aparecem depois do g. A 1ª pessoa do presente do indicativo (eu vigo) não tem vez. Nem o presente do subjuntivo. Que eu viga? Uhhhhhhhh! Nas demais, é regular. Conjuga-se como vender: vende (vige), vendemos (vigemos), vendem (vigem), vendeu (vigeu), vendia (vigia), venderá (vigerá), vendesse (vigesse). Etc. e tal.
Ver
Se eu vir Papai Noel? Se eu ver Papai Noel? Olho no futuro do subjuntivo. Ele se forma do pretérito perfeito do indicativo. Mais precisamente: da 3ª pessoa do plural sem o -am final:
Pretérito perfeito: eu vi, ele viu, nós vimos, eles vir(am)
Futuro do subjuntivo: se eu vir, ele vir, nós virmos, eles virem
Logo: Se eu vir Papai, Noel, faço o pedido.
Antigamente, quando o mundo usava fraldas, os astrônomos faziam o que fazem hoje. Namoravam o céu. Sem dispor dos instrumentos atuais, usavam os olhos pra discriminar os moradores celestes. Descobriram, então, que alguns se moviam. Outros se mantinham fixos. Contaram os caminhantes. Eram sete. Cinco receberam o nome de deuses da mitologia — Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus e Saturno. O Sol e a Terra eram velhos conhecidos.
Os estudiosos foram além. Chamaram os paradões de astros e estrelas. Os passeadores ganharam um adjetivo. Viraram asteres planetai. Em bom português: estrelas errantes. O tempo passou. A lei do menor esforço entrou em cena. Asteres planetai tornaram-se planetas. O nome pegou.
Na língua também existem criaturas errantes. São os pronomes átonos. Me, te, se, lhe, o, a adoram bater perna. Ora aparecem antes do verbo. Ora, depois. Há também os que se metem no meio. Mas, apesar da flexibilidade, muitos abusam. Cometem pecados. Sete se destacam.
Iniciar a frase com o fracote
O pronome se chama átono porque é fraco. Tão fraco que precisa de apoio. Onde se encostar? Em outra palavra. Por isso, na norma culta, é proibido iniciar a frase com pronome átono. O pecador deixa a vítima desamparada. Ela tomba. Na queda, atropela a reputação do ímpio. Os pronomes retos podem começar frases, e também as conjunções - coordenativas e subordinativas.
Ignorar a abrangência de iniciar
Olho vivo! Iniciar a frase tem duas acepções. Uma é iniciar mesmo, ser a primeira palavra do período. Assim: Me dá um cigarro? Te telefono amanhã. Lhe deu a resposta ontem.
A outra usa máscaras. Deixa, como na acepção anterior, o pronome desprotegido. Mas não inicia a frase. Em geral vem depois de vírgula. Compare: Aqui se fala português. ( O aqui ampara o pronome.) Aqui, fala-se português. (Ops! A vírgula impede o apoio.)
Nem sempre a vírgula expulsa o pequenino para depois do verbo. Há casos em que ela separa termos intercalados. O apoio se distancia, mas permanece. Preste atenção na malandragem: Brasília se localiza no Planalto Central. Brasília, a capital do Brasil, se localiza no Planalto Central. (Mesmo de longe, Brasília ampara o pronome.)
Desrespeitar a atração
Há palavras que funcionam como ímãs. Puxam o pronome para junto de si. Lembra-se delas? Eis algumas: os advérbios, pronomes relativos, indefinidos e demonstrativos (aqui, já, lá, muito, talvez, sempre, realmente, que, quem, qual, cujo, onde, como, quando, quanto, alguém, outros, muitos, todos, tudo, este, esse, aquele, isto, isso, aquilo), a turma negativa (não, nunca, jamais, ninguém, nada), as senhoras conjunções subordinativas (quando, que, se, como, porque, embora, conforme): Quero que se retirem logo. Não me disse nada. Se me convidarem, irei.
Algumas são opcionais: os substantivos, os numerais, os pronomes pessoais retos, os pronomes de tratamento, os pronomes possessivos e as conjunções coordenativas (e, nem, mas, porém, todavia, contudo, logo, portanto).
Bobear com o futuro
Sabia? A terminação do futuro tem alergia ao pronome. Ambos, futuro do presente (irei) e futuro do pretérito - antigo condicional (iria), ficam cheinhos de brotoejas diante do átono. A saída? Há duas.
Uma: levar o pronome para antes do verbo. No caso, o pequenino tem de ter amparo: Maria me telefonará amanhã. Se pudesse, Lula, o presidente do Brasil, se manteria no Planalto.
A outra: ficar no meio do caminho. Sem apoio e impedido de se colocar na rabeira do verbo, fica no meio do caminho. Como? Posiciona-se entre o infinitivo e a terminação do verbo. Veja: Telefonar-lhe-ei amanhã. Falar-se-iam mais tarde.
Também você pode usar um verbo auxiliar: Vou lhe telefonar amanhã. Eles iam se falar mais tarde.
Esquecer a maquiagem
Ops! Olho nos pronomes o e a. Antecedidos de r, s, z, viram lo, la: Vou pôr o livro na estante. (Vou pô-lo na estante.) Ajudamos os amigos. (Ajudamo-los.) Fez a filha feliz. (Fê-la feliz.)
Por que semana se chama semana? A semana se chama semana porque vem de septimana. A latina significa sete manhãs consecutivas. Explica-se. O número cabalístico tem tudo a ver com as fases da lua. Com base na duração de cada uma, criaram-se os primeiros calendários anuais. São os calendários lunares. Eles orientavam os agricultores sobre as estações do ano e, consequentemente, os períodos de plantio e colheita.
A língua dos Césares doou mais ao português. A herança aparece no vocabulário e em expressões pra lá de sofisticadas. Escrevê-los e empregá-los como gente grande pega bem como usar cinto de segurança, respeitar as vagas privativas e dar sonoro bom-dia a desconhecidos encontrados no caminho.
Sic
Expulsaram o latim da escola. Não adiantou nada. Ele vive assombrando a língua. O sic, por exemplo. As três letrinhas aparecem a torto e a direito. Significam assim, desse jeitinho, sem tirar nem pôr. Usamo-las entre parênteses, depois de palavra desatualizada, com grafia incorreta ou com sentido inadequado ao contexto. Com elas, damos este recado ao leitor: o texto original é bem assim. Não tenho nada com isso. Em bom português: o sic nos deixa bancar o Pilatos — lavar as mãos.
Mutatis mutandis
Eta coisa chique! Mutatis mutandis dá show de esnobação. A duplinha quer dizer mudando o que deve ser mudado. Usa-se quando se adapta uma citação ao contexto ou às circunstâncias. Em outras palavras: com a devida alteração de pormenores.
Habeas corpus
A polícia põe o suspeito no xilindró. Uma ordem judicial manda soltá-lo. É que o sabido entrou com pedido de habeas corpus. A expressão jurídica é antiga como andar pra frente. Quer dizer “que tenhas o corpo para apresentá-lo ao tribunal”. Na prática, tem duas funções. Uma: pôr em liberdade quem estiver ilegalmente preso. A outra: garantir a liberdade de quem estiver ameaçado de perdê-la. (É o tal habeas corpus preventivo.)
Habitat
A trissílaba dá nome ao conjunto de circunstâncias físicas e geográficas que oferecem condições favoráveis ao desenvolvimento de determinada espécie animal ou vegetal. Às vezes anda acompanhada do adjetivo natural. Mau. Muito mau. Trata-se de baita pleonasmo. Todo habitat é natural. O adjetivo sobra. Xô!
Persona non grata
Para diplomatas, o trio soa mal como voz de prisão ou voz de ex-marido e ex-mulher. Explica-se. Ele dá recado polido porém claro. Informa que a pessoa não é bem-aceita por um governo estrangeiro. Xô!
Carpe diem
Oba! Carpe diem soa melhor que a Quinta sinfonia, de Bethoven; A paixão segundo Mateus, de Bach; As quatro estações, de Vivaldi; o Danúbio azul, de Strauss; o Bolero de Ravel. Por quê? O significado responde: aproveite o dia de hoje. A vida é curta. A morte, certa.
Ipsis litteris
Você precisa copiar o texto ipsis litteris? Então não vacile. Transcreva-o textualmente — sem tirar nem pôr.
Dura lex, sed lex
Reparou? As expressões latinas não têm acento nem hífen. Se aparecer um ou outro, elas perdem a originalidade. Entram, então, na vala comum dos compostos. Ganham hífen. Compare: via crucis, via-crúcis.
O arco-íris tem sete cores — vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Tem, também, outros nomes. Alguns o chamam de arco-celeste. Outros, arco da aliança. Há os que preferem arco da chuva, arco-da-velha ou arco de Deus. Seja qual for a denominação, o fenômeno óptico representa algo mais que o show multicolorido do céu.
Cristianismo, islamismo e judaísmo dizem que, depois do Dilúvio, quando a arca de Noé pousou sobre o Monte Ararat, Deus fez um pacto com os homens. Prometeu que nunca mais inundaria a Terra. Depois de cada chuva, o arco nas nuvens simbolizaria a aliança entre o Todo-Poderoso e os seres vivos do planeta.
Pacto semelhante firmaram as criaturas humanas. Trata-se da grafia das palavras. Emprego das letras, do hífen, dos acentos sempre foi uma grande confusão. Muita conversa rolou. Não faltaram xingamentos e sopapos. Mas valeu a pena. Saiu o acordo. Ele está no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp). Os dicionários se baseiam nele. Segui-los pega bem. Informa que temos familiaridade com a escrita.
Pacto da aliança
Leis existem para serem cumpridas. Mas nem todos o fazem. As principais vítimas são palavras que soam do mesmo jeito, mas se escrevem de forma diferente. O ouvido, infiel, engana. A gente se descuida. Ops! A punição não tarda. Cai a classificação em concursos. Vão-se promoções. Perdem-se amores. Ninguém merece. Nem você. Eis as principais tentações que, disfarçadas de ciladas, jogam o distraído nas fogueiras infernais.
Hora e ora
Hora significa 60 minutos: É uma hora. Que horas são? A velocidade da via é de 60km por hora. Também significa momento exato, ocasião importante, oportunidade, parcela de tempo vivida sob tensão ou carga horária semanal de funcionário, servidor etc.
Ora quer dizer alternância, por enquanto, por agora: Ora estuda, ora trabalha. Lamento, mas, por ora, nada posso fazer. Também é usada como interjeição, para expressar irritação ou ironia, também usada na expressão 'ora bolas', e como presente do indicativo ou imperativo afirmativo do verbo orar.
Demais, de mais
Demais joga no time do exagero. Tem a acepção de muito, demasiadamente: Como demais. Fala demais. Corre demais. Também significa os outros: Os aprovados permanecem, os demais podem sair. Pode ser usado como adjetivo também: Que demais!
De mais quer dizer a mais. Opõe-se a de menos: Ele me deu troco de mais (de menos). Até aí, nada de mais (de menos). O Brasil tem processos de mais e juízes de menos.
Mal e mau
Mau, adjetivo, opõe-se ao também adjetivo bom. Na dúvida, parta para o troca-troca. Reescreva a frase com o antônimo. Se soar natural, escreva o monossílabo com u sem susto: lobo mau (lobo bom), mau humor (bom humor), mau funcionário (bom funcionário).
Mal tem dois papéis. Pode ser substantivo ou advérbio. Em ambos, opõe-se a bem: Nos filmes românticos, o bem vence o mal. As drogas são o mal da atualidade. Não tenho paciência com mal-humorados.
Mais e mas
Mais é o contrário de menos: Um mais um é igual a dois. Trabalho mais do que ele. É isso, sem mais nem menos.
Mas, conjunção adversativa, quer dizer porém, todavia, contudo, entretanto, no entanto: Estudei muito, mas não passei no concurso. O deputado fala muito, mas não convence. Muitos trabalham pouco, mas ganham altos salários.
Ó, oh
Ó aparece no vocativo, quando chamamos alguém: Deus, ó Deus, onde estás que não me escutas? Até tu, ó Brutus, meu filho! Ó Paulo, entra, que está chovendo.
Oh! é interjeição. Tem vez quando ficamos de boca aberta — de admiração ou espanto: Oh! Que linda criança. Oh! Que trapaceiro! Ó Rafa, não entendi seu oh! de espanto. Pode me explicar?
Resumo da arca
É isso. Tomada e focinho de porco são salientes e têm dois buracos. Mas um dá choque. O outro cheira. Confundi-los cria problemas. E como! Na língua, ocorre o mesmo. Há palavras que, na aparência e na pronúncia, são quase iguais. Mas confundir-lhes a grafia faz estragos. Xô!
O gato tem sete vidas? Ninguém contou. Mas todos dizem que sim. A crença se baseia nas características do bichano. Ele é ágil, resistente e exibe senhor equilíbrio. Quando cai, cai de pé, sobre as quatro patas. Machuca-se? Nem pensar. Sai ileso do tombo. Mais: esperto, o peludo escapa dos predadores. O corpo flexível, a visão penetrante e a audição aguçada lhe tornam a fuga pra lá de fácil.
Sete são as características que asseguram a longevidade do felino — agilidade, resistência, equilíbrio, esperteza, flexibilidade, audição e visão. Sete são as expressões que nos condenam ao fogo eterno. Basta um descuido e lá vem a caída impiedosa. Nos subterrâneos, o capeta espera com o tridente em brasa. Valha-nos, Deus! Não nos deixeis cair na tentação de confundir sete alhos com sete bugalhos.
Oito ou oitenta
São expressões parecidas, mas diferentes. Quilômetros de distância as separam.
À medida que ou na medida em que? Depende. Ambas se parecem como irmãs gêmeas. Mas, como diz o outro, parecido não é igual. Mas confunde. Não caia na desatenção. Abra os olhos e aguce os sentidos:
À medida que = à proporção que: Minha redação melhora à medida que escrevo.
Na medida em que = porque, tendo em vista: A dengue se alastra na medida em que não se combatem os focos do mosquito transmissor.
Pecado: cometer cruzamentos. Parte de uma estrutura se junta a parte de outra. Nascem os mostrengos à medida em que ou na medida que. Xô, satanás! Acuda-nos, Senhor! Pra não cair em tentação, lembre-se do 8 ou 80. À medida que tem três palavras. Na medida em que, cinco. Com elas, a coluna do meio não tem vez.
A favor ou contra
Ao encontro ou de encontro? Ops! Uma expressão é o contrário da outra. Trocar as bolas é o passaporte para as fogueirinhas do tinhoso:
De encontro = contra, no sentido contrário: O carro foi de encontro ao poste. Minha opinião vai de encontro à sua.
Ao encontro de = a favor de, na direção de: O neto caminhou ao encontro dos avós. Vou ao encontro do meu sonho.
No começo, em tese
A princípio ou em princípio? Ops!
A princípio = inicialmente, no começo: A princípio, ninguém acreditava na vitória de Dilma Rousseff. Depois, com o resultado das pesquisas, as opiniões mudaram.
Em princípio = antes de mais nada, teoricamente, em tese: Em princípio, toda mudança é benéfica.
Contrários e substituições
Ao invés de ou em vez de? Conheça a diferença entre uma e a outra. Depois, navegue na superdica:
Ao invés de = ao contrário de: Morreu ao invés de viver. Comeu ao invés de jejuar. Dormiu ao invés de ficar acordado.
Em vez de = em lugar de: Comeu peixe em vez de carne. Foi ao teatro em vez de ir ao cinema. Escreveu em vez de ler.
Superdica: não há restrições ao uso de em vez de.
Saber à altura
A par ou ao par? Olho vivo:
A par = estar informado, ciente: Estou a par dos bastidores da formação do ministério Dilma.
Ao par = equivalência / igualdade cambial: A pesquisa brasileira não está ao par da americana. É muito usada por quem trabalha no câmbio e na bolsa de valores.
Às vezes ou sempre
Aos domingos ou nos domingos? Se a ação se repete, é a vez da preposição a. Se ocorre uma vez ou de vez em quando, em: Vou à missa aos domingos. Estudo inglês às segundas e quartas. Marcelo se casou no sábado. Ele foi batizado no último domingo.
No âmbito, à altura
Em nível de ou ao nível de? A duplinha tem função bem definida. Ei-la:
Em nível de = no âmbito de: Faço um curso em nível de pós-graduação. A decisão foi tomada em nível de diretoria.
Ao nível de = à altura de: Santos fica ao nível do mar.
Pecado: a nível de. Eta praga feia. O trio não existe. Fuja dele como o diabo foge da cruz.
Superdica: em nível de existe. Mas é dispensável. Sobra. Sem ele, a frase ganha em concisão e elegância: Faço um curso de pós-graduação. A decisão foi tomada pela diretoria.
Há pecados e pecados. Existem os pecadilhos veniais. Leves, os erros não incomodam a Deus. Quando o Todo-Poderoso vê criaturas furando filas, fingindo tristeza em velório ou trabalhando no domingo, sorri compreensivo e as deixa pra lá. Elas nem precisam pedir perdão. Tendo mais o que fazer, o dono do céu, da Terra e do universo as desculpa antecipadamente.
No outro extremo, estão os atos que ferem ao Senhor, a você e ao próximo. São tão pesados que não têm clemência. O papa Gregório Magno, lá no século VI, os especificou. São os sete pecados capitais. O adjetivo não deixa dúvida. Os escorregões são graves. Ei-los: gula, avareza, inveja, ira, vaidade, luxúria e preguiça.
Nem todos, porém, se curvam ao clamor da igreja. Há os que têm o olho maior que a barriga, os Tios Patinhas da vida, os professores de Deus, os Macunaímas soltos mundo afora. A tentação é tal que ultrapassa o espaço humano. Chega ao da língua. Vale o exemplo do haver. O verbo pagou pra ver. Cometeu os sete pecados.
Passo a passo
Gula? Eis o primeiro desafio. Como traduzir na língua o comer além do necessário a toda hora? A resposta: multiplicando regências, funções e significados. Fiquemos com os últimos. O dissílabo pode ser:
1. substantivo. Aí quer dizer bem, riqueza: Na partilha, perdeu metade dos haveres.
2. verbo. Ops! O dicionário registra quase 20 acepções. Entre elas, ter, possuir (hei um emprego); obter, conseguir (depois de muita luta, houve o que buscava); considerar, julgar (houveram que era abuso aceitar as exigências do governador); existir (há 20 casas na rua); fazer (havia meses que não falávamos); entender-se, arranjar-se (não sabia que o filho se havia com traficantes). Etc. e tal.
Caiu em desuso o uso do verbo haver no sentido de posse, mas esse sentido se mantém em reaver - que significa haver de novo, possuir outra vez.
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Avareza? Como chegar lá? O haver inspirou-se em palavras e expressões do povo sabido. Entre elas, mesquinho, sovina, canguinha, muquirana, morrinha, pão-duro, mão-fechada, mão de vaca, sapo morreu na unha, não dá adeus pra não abrir a mão, não come ovo pra não jogar a casca fora, nada com o Sonrisal na mão, e o efervescente continua seco.
Eureca! Em vez de flexionar-se nas três pessoas (eu, nós; tu, vós; ele, eles), o verbo estacionou em uma. Impessoal, só se conjuga na 3ª pessoa do singular. Ele pratica esse pecado em três ocasiões:
1. na acepção de ocorrer: Houve mortes no Complexo do Alemão.
2. no sentido de existir: Há três casas na rua.
3. Na contagem de tempo passado: Moro em Brasília há dois anos.
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Inveja? Desde que nasceu, o haver não tirava os olhos da expressão haja vista (= veja-se). Também ele queria porque queria andar em duplinha. Como? Tornou-se auxiliar. Colado ao particípio de outro verbo, forma tempo composto: que eu haja visto, ele haja visto, nós hajamos visto, eles hajam visto. Como conectivo, haja vistos e haja vistas são invenção.
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Ira? Ops! É reação de Deus. Os homens sentem ódio, raiva. O haver também. Nada lhe desperta os instintos mais bárbaros do que contrariá-lo. Atrevidos o tornam pessoal quando é impessoal. Em vez de “houve distúrbios”, dizem “houveram distúrbios”. Em lugar de “havia casas”, preferem “haviam casas”. Pagam caro. A fúria do verbo desmoraliza reputações e rouba pontos no vestibular, no concurso, no emprego. Valha-nos, Deus!
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Vaidade? Ah! A palavra soa como música. Sem humildade, o dissílabo se sente autossuficiente. Na indicação de tempo, basta o há. Dizer “há dois anos atrás”? Cruz-credo! O atrás sobra. Explica-se. O há indica passado. O atrás também. Xô, pleonasmo!
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Luxúria? Louco pelos prazeres da carne, o haver é do tempo em que não havia camisinha. Resultado: teve filhos. Um deles: reaver. O garoto quer dizer haver de novo (recuperar). Muitos lhe confundem a paternidade, acham que ele vem do verbo ver. Bobeiam. Ele só se conjuga nas formas em que aparece o v do paizão: reouve, reaveria, reaverão.
Reveja existe, mas vem do verbo rever. Reaja existe, mas é do verbo reagir.
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Preguiça? “Ora, se Deus descansou no sétimo dia”, pensa ele, ” por que eu não haveria de fazê-lo? O verbo desconfia de discriminação. O descanso de Deus é repouso. O dele, preguiça.
Conhece a expressão “a sete chaves”? Pois saiba que ela esconde um senhor mistério. Trata-se do número. Em Portugal, lá pelo século 13, não havia cofres. Dinheiro, documentos, joias, metais preciosos & tudo o mais que exigia proteção guardavam-se em arcas de madeira. Elas tinham quatro fechaduras e, claro, quatro chaves. Cada uma ficava com um servidor pra lá de graduado e merecedor da total confiança do rei. Abrir o baú implicava cerimônia cuidadosa com a presença do quarteto.
Pergunta-se: o que “a quatro chaves” tem a ver com “a sete chaves”? Resposta: o mistério. O povo considerou o quatro sem graça. Preferiu o cabalístico sete para designar segredo ultra mega advanced hi-tech guardado. A expressão dava ideia da curiosidade que o conteúdo tão protegido despertava em homens, mulheres e crianças.
Desvendado o enigma medieval, vale decifrar mistério contemporâneo. Trata-se da pronúncia de sete palavras. Por motivos que até Deus ignora, elas caíram na boca do povo e da elite. Mas, a exemplo do quatro que virou sete, trocou-se a sílaba tônica dos vocábulos. O resultado é um só: a silabada bate pesado nos ouvidos. Quem sente o golpe não deixa por menos. Foge. Os mais sensíveis são os apaixonados. Sem resistir à dor, eles partem pra outra. Perdem-se promessas, juras e eternidade. Confirma-se, assim, fato pra lá de conhecido. O amor é cego, mas não é surdo.
Olho na fortona
* Subsídio jogo no time de subsolo, subserviente, subsalário, subsaariano, subsimilar, subsíndico, subsinuoso, subsíndico, subsecretário, subsequente. Em todas, o s que vem depois do sub se pronuncia ss. Sem tossir nem mugir. Nada de pronunciar com som de Z.
* Recorde, concorde e acorde orgulhosamente pertencem à equipe das paroxítonas. A sílaba mandachuva é cor sim, senhor. Dizer “récord”? É a receita do cruz-credo. Xô!
A emissora é Record, porque se trata de nome de empresa. Nesse caso, há liberdade.
* Rubrica e fabrica são irmãzinhas inseparáveis. A força delas mora na casa do meio — a paroxítona (bri). A dupla tem vizinhos legais. À direita, a senhora oxítona. À esquerda, a dona proparoxítona. Confundir endereços? Valha-nos, Deus. Papai Noel entregará os presentes para quem não pediu. Convenhamos: ninguém merece pagar tal mico.
* Nobel, Mabel, papel e cruel se pronunciam do mesmo jeitinho. A sílaba tônica é a última. Na dúvida, pense um pouco. Se Nobel fosse paroxítona, pertenceria à gangue de móvel e automóvel. Teria acento. Como não tem, a conclusão é uma só. O nome do prêmio mais cobiçado do planeta é oxítono e não abre. PT saudações.
* Ibero é a forma alatinada de ibérico. Trissílabo e polissílabo têm o mesmo significado. Designam os originários da Península Ibérica, que engloba Portugal e Espanha. A menorzinha mantém a marca da grandona. A sílaba tônica de ambas é a mesma — be. Diga, pois, sem medo de errar: cúpula ibero-americana, povos ibero-americanos, presidentes ibero-americano.
* Gratuito e intuito são como circuito. Nas três, o ui forma ditongo. Não se separa nem com sangue, suor e lágrimas. Vamos combinar? Se a fortona recaísse no i, o acentão pediria passagem como em cuíca. Não é gratuíto nem intuíto.
* * Linguiça, tranquilo, cinquentenário, sequência, sequestro, sagui & cia. perderam os anéis, mas mantiveram os dedos. Em bom português: a reforma ortográfica lhes cassou o trema, mas a pronúncia nem ligou. Sabida, hein? A reforma é ortográfica. Só atingiu a grafia das palavras.
Sete são os dias da semana. Sete são os pecados capitais e suas virtudes opostas. Sete são as maravilhas do mundo. Sete são as cores do arco-íris. Sete são as notas musicais. Sete são os dias gastos por Deus pra criar o mundo. Sete são as cores do arco-íris. Sete são os sacramentos da Igreja. Sete são os dons do Espírito Santo. Sete dias é duração de cada fase da lua. Sete anos é o tempo para a renovação interna por que passamos ao longo da vida.
Número tão especial mereceu sugestão de pessoa pra lá de especial. “Vamos falar dos sete pecados da língua?”, pergunta Marcelo Abi. “Claro que há muitos assuntos a serem tratados. O blog poderia, então, fazer uma série. Cada tema mereceria uma lição. Que tal começar pela crase? O acentinho me deve muitas horas de sono.” Leitor não pede. Manda. A seguir, as escapadinhas que levam os descuidados a arder nas fogueirinhas do inferno.
Não use o acento grave
1. antes de nome masculino. Crase é o casamento de dois aa. Um deles é a preposição. O outro, o artigo. Ora, o pequenino a só tem vez antes de nome feminino. O machinho pede o: Bebê a bordo. Saiu a todo vapor.
Só ocorre quando a expressão à moda de estiver subentendida.
2. com palavras repetidas: cara a cara, uma a uma, gota a gota, face a face, semana a semana, frente a frente, dia a dia, lado a lado, passo a passo.
3. antes dos pronomes pessoal, indefinido e os demonstrativos esta, essa: Dirigiu-se a esta funcionária. Confessou a ela as trapaças que havia feito. Saiu a toda. É honesto a toda prova. Aplaudia o funcionário a cada etapa vencida. Assistiu a algumas cenas do filme. O assessor fala com o presidente a qualquer hora.
E também não se usa antes de pronome de tratamento - com exceção de senhora, senhorita, dona e madame, da expressão Nossa Senhora e de nomes de santas - com exceção de Virgem Maria, de sujeito, objeto direto e quando antes do A houver uma preposição - exceto até, em que é facultativa.
4. com o a no singular seguido de nome plural: Assistiu a reuniões durante o dia. Falou a professoras presentes ao evento. Vai a cidades sugeridas no roteiro. Conseguiu o emprego a duras penas.
5. com o casalzinho de…a: Trabalho de quarta a sexta. Viajo de segunda a segunda. De quarta a sexta, faço plantão de 24 horas.
6. antes de nome de cidade (sem adjunto adnominal): Chegou a Brasília. Bem-vindo a São Paulo. Vou a Moscou, a Paris e a Roma. (Compare: Chegou à Brasilia de JK. Foi à Moscou dos czares, à Paris da alta costura e à Roma dos papas. Bem-vindo à São Paulo dos bandeirantes.)
7. antes da locução a distância (indeterminada): Siga-a discretamente, a distância. A universidade oferece cursos a distância. A distância, todos os gatos são pardos. (Se a distância for determinada, o acento tem vez: Segui Maria à distância de mais ou menos 100m. Os sem-terra marchavam à distância de um quilômetro.)